- Garçom, duas xícaras de café com
leite, faça o favor!
Aqui nesta mesa, lhe confesso o café
que me foi negado em tempos antigos, o leite que me foi derramado e frio,
azedou. Quando pequena, junto aos mais velhos, o que me sobrava era a porcaria
do café com leite, a mistura do contento. “- É isso o que tens, contente-se”. Infeliz
idade do pega-pega, do esconde-esconde, da criação do chicote (queimado só para mim). Infeliz dias de café com leite, quando todos na sala se embriagavam com o
azedume da bebida quente e amarga, do leite entupido de nata. Infeliz idade de
quando, para mim, só servia-me a mistura.
Aqui nesta mesa, lhe confesso as
dores do crescimento, minha crise adolescente, meus tormentos e a estúpida
mistura que nunca me deixou....
- Garçom! Mais uma dose, por favor.
Atormentada pelo contentamento
durante toda uma vida. Nada o bastante para um café puro e forte, fraca demais
para um leite azedo e frio. Café com leite na vida! No amor: o que me restou, o
que sobrou, as migalhas, a frieza, o tormento da não correspondência. PORCARIA
DE MISTURA! Única coisa que queria era um café quente, ao lado do meu amor em
dias de frio. Porcaria de leite, que derramado, esfriou e me esqueceu.
- Garçom!
Não bastante a bebida aterrorizante
que me era oferecida em todos os momentos de minha vida, eu era e sou, quem
sabe serei: o próprio café com leite.
Nem doce, nem amarga, nem quente, nem fria, mistura equilibrada composta
por extremos. Estúpido café com leite que me afoga e impede de sofrer um pouco
mais. Sofrer um pouco mais...
- Garçom? Não, a bebida ainda não
acabou... Pode sentar-se um pouco? Quero lhe confessar...
Ingratidão! O café com leite me
perdoe, ingrata que fui por toda uma vida. Quis trocar quem sempre me
protegeu... Aqui nesta mesa, te digo: o café nunca me escolheu, o leite nunca me
agradou. Separados, nada são... Me dão horror, posso ver.
-Garçom? Não vá embora, não agora,
preciso contar.
Há pouco tempo eu experimentei a
frieza que me congelou, o calor que me queimou... a dor por ter deixado o meu
odiado café com leite. Entenda, pelo amor de Deus, não é confuso nem
complicado. É um mero café com leite em desagrado, e eu, a menina que hoje cobiça a mistura. A vida é dura, garçom amigo. Cruel. Pobre, mendigo um pouco
mais de paz. A vida é dura, garçom! E eu sou estranha, sei... mas que culpa
tenho de odiar ser o café com leite, mas querer a mistura para mim?
Para tudo nessa vida poderíamos dar
um jeito, metade café e metade leite, escolher entre os dois não dá certo:
preciso do amargo para conhecer o doce, do frio para conhecer o quente, da
mistura para odiar as separações, a desgraçada geração solitária que nego até a
morte.
Não me contento com a solidão, hoje
entendo o café com leite e peço perdão...
- Garçom? A mistura acabou...
Sei que já passou do horário, já
estou-me indo. Prometa-me somente, que para tudo na vida daremos um jeito, o
nosso, mesmo que não seja bem feito. Para tudo, garçom... o nosso jeito.
Ao café que me é oferecido, ao
leite, maldito. À mistura que me embriago, nesta mesa, um brinde!
Ao café com leite, minha (in)gratidão!